Por - Pedro Augusto V. L. Soares
A música enquanto discurso sonoro é produto de um contexto histórico, pois, o compositor capta através de sua arte as tensões vivenciadas pela sociedade tornando-a um veículo para exposição de ideias. Na intenção de identificar a temática do negro em músicas populares, selecionei dentre as canções de Gilberto Gil algumas que tratam desta questão.
Neste contexto, Gilberto Gil, em A Mão da Limpeza, convoca o ouvinte a usar a imaginação ao utilizar da narrativa tecendo suas memórias com o fim de transmitir os fatos para gerações seguintes e assim desconstruir a imagem criada pelo outro, pelo branco:
O branco inventou que o negro
Quando não suja na entrada
Vai sujar na saída, ê
O compositor coleta os fatos da história do povo africano nas Américas e ao articular o tema constrói o discurso poético negro – os acontecimentos mostrados, a rememoração de um passado coletivo e tece um dos caminhos para a construção de uma identidade cultural. O uso do “Ê” não possui apenas o efeito sonoro, este som remete ao imaginário coletivo e traz de volta as origens africanas.
Gil insiste sobre a veracidade dos fatos e tece a sua versão:
Na verdade a mão escrava
Passava a vida limpando
O que o branco sujava, ê
Imagina só
O discurso poético negro é constituído pela sua história, afinal a busca da identidade se faz também pelo caminho da cultura partilhada, uma ancestralidade, uma história em comum. Na letra ainda temos a maneira como o povo negro foi posicionado e sujeitado pelos regimes de representação dominantes.
Mesmo depois de abolida a escravidão
Negra é a mão
De quem faz a limpeza
Lavando a roupa encardida, esfregando o chão
Negra é a mão, é a mão da pureza
O processo de formação de classes tem certas particularidades no Brasil. Extinta a escravidão, a ideia corrente é que os negros foram automaticamente formar o proletariado das cidades que se desenvolviam, e em pé de igualdade com outras levas proletárias constituídas em sua maioria de imigrantes. Na verdade, já estava instaurado o preconceito racial, inclusive na própria classe proletária. Os negros saídos das senzalas não se incorporavam automaticamente à classe operária. O negro e outros não-brancos vão compor a grande parcela dos marginalizados decorrentes das relações sociais que substituíram o escravismo. Privilegia-se, por exemplo, a mão de obra imigrante e empurra-se o negro para baixo, para os piores setores da economia.
Nesse processo o negro é logrado socialmente e apresentado como incapaz para trabalhar como assalariado. Nasce aí o mito da incapacidade do negro para o trabalho. O negro seria a partir dessa percepção racista visto como indolente, cachaceiro, não persistente. Enquanto o branco seria o trabalhador ideal. Em um momento da nossa história social, após a oficialização do fim do regime escravista, houve uma coincidência entre a divisão do trabalho e a divisão racial do trabalho. O que gerou o predomínio do branco em certos tipos de atividades e em outros os negros e seus descendentes. Temos assim que todo trabalho dito “qualificado”, “intelectual”, “nobre”, “limpo” era exercido pela minoria branca, ao passo que o subtrabalho, o trabalho não qualificado, braçal, subalterno é praticado pelo escravo e depois pelos negros livres.
Negra é a vida consumida ao pé do fogão
Negra é a mão
Nos preparando a mesa
Limpando as manchas do mundo com água e sabão
Negra é a mão
De imaculada nobreza
Esta divisão de trabalho persiste até os dias atuais como parte dos resquícios de um sistema colonial e escravista. E assim a mobilidade social do negro descendente do antigo escravo é pequena. Seguindo Patrícia Hill Collins nas imagens de controle trazidas por Winnie Bueno (2019), o negro foi praticamente imobilizado pelos mecanismos sociais que as elites estabeleceram.
A poesia negra é constituída pela reversão dos valores e avaliação do outro. A lei maior da negritude é mostrar como positivo tudo que era julgado como negativo. Não apenas nas características físicas, também nos aspectos históricos e culturais. Tudo deve ser dito e dito com exaltação. É nessa linha que segue Gilberto Gil ao desconstruir a imagem estereotipada sobre o negro. E esta é a intenção do compositor ao trazer para os versos iniciais de A Mão da Limpeza o dito popular e dar-lhe um sujeito enunciador – O branco.
O branco inventou que o negro
Quando não suja na entrada
Vai sujar na saída, ê
Imagina só!
E o estereótipo é desconstruído:
Na verdade, a mão escrava
Passava a vida limpando
O que o branco sujava, ê
Uma distinta oposição entre identidade criada pelo colonizador e a realidade. O branco inventou... Na verdade, a mão escrava.
A identidade e a consciência étnica são penosamente escamoteadas pelos brasileiros. Os censos do país já registraram diversas denominações diferentes que o brasileiro usou para fugir de sua verdade étnica e aproximar-se do modelo tido como superior.
A ideologia do branqueamento nos remete ao século XIX. O colonizador português que com o seu sistema classificatório possibilitou a “categoria mulato” – para diferenciar o negro mais claro, portanto superior. Isso constituiu uma fragmentação da identidade étnica e que determinará a impossibilidade de surgir uma consciência mais abrangente do segmento negro e não branco.
Gil em Sarará Miolo, com os versos irônicos, por um lado, e imperativo por outro, chama atenção para consciência da identidade étnica
Sara, sara, sara, sarará
Sara, sara, sara, sarará
Sarará miolo
Sara, sara, sara, cura
O não branco luta para mascarar suas matrizes étnicas com os valores criados para discriminá-lo.
Sara, sara, sara cura
Dessa doença de branco
De querer cabelo liso
Já tendo cabelo louro
Cabelo duro é preciso
Que é para ser você, crioulo
O “cabelo pixaim” é abominado pelo não-branco e ele luta para escondê-lo. Mas Gilberto Gil conclama:
Sara, sara, sara cura
Dessa doença de branco,
E anuncia a lei maior da negritude, valorizar, mostrar como positivo tudo que era desvalorizado. É desta forma que Gilberto Gil traz o discurso do negro e o desejo de um novo olhar para aquela representação que se convencionou ao longo do tempo.
Resenha crítica produzida como atividade do componente curricular - Jornalismo e Cultura Brasileira ministrada pela profa. Helen Campos.