segunda-feira, 31 de maio de 2021

A temática do negro em músicas de Gilberto Gil

 Por - Pedro Augusto V. L. Soares


A música enquanto discurso sonoro é produto de um contexto histórico, pois, o compositor capta através de sua arte as tensões vivenciadas pela sociedade tornando-a um veículo para exposição de ideias. Na intenção de identificar a temática do negro em músicas populares, selecionei dentre as canções de Gilberto Gil algumas que tratam desta questão. 

Neste contexto, Gilberto Gil, em A Mão da Limpeza, convoca o ouvinte a usar a imaginação ao utilizar da narrativa tecendo suas memórias com o fim de transmitir os fatos para gerações seguintes e assim desconstruir a imagem criada pelo outro, pelo branco: 

 

O branco inventou que o negro

Quando não suja na entrada

Vai sujar na saída, ê 




 

O compositor coleta os fatos da história do povo africano nas Américas e ao articular o tema constrói o discurso poético negro – os acontecimentos mostrados, a rememoração de um passado coletivo e tece um dos caminhos para a construção de uma identidade cultural. O uso do “Ê” não possui apenas o efeito sonoro, este som remete ao imaginário coletivo e traz de volta as origens africanas. 

 

Gil insiste sobre a veracidade dos fatos e tece a sua versão: 

 

Na verdade a mão escrava 

Passava a vida limpando

O que o branco sujava, ê

Imagina só

 

O discurso poético negro é constituído pela sua história, afinal a busca da identidade se faz também pelo caminho da cultura partilhada, uma ancestralidade, uma história em comum. Na letra ainda temos a maneira como o povo negro foi posicionado e sujeitado pelos regimes de representação dominantes. 

 

Mesmo depois de abolida a escravidão 

Negra é a mão 

De quem faz a limpeza

Lavando a roupa encardida, esfregando o chão

 Negra é a mão, é a mão da pureza

 

 

O processo de formação de classes tem certas particularidades no Brasil. Extinta a escravidão, a ideia corrente é que os negros foram automaticamente formar o proletariado das cidades que se desenvolviam, e em pé de igualdade com outras levas proletárias constituídas em sua maioria de imigrantes. Na verdade, já estava instaurado o preconceito racial, inclusive na própria classe proletária. Os negros saídos das senzalas não se incorporavam automaticamente à classe operária. O negro e outros não-brancos vão compor a grande parcela dos marginalizados decorrentes das relações sociais que substituíram o escravismo. Privilegia-se, por exemplo, a mão de obra imigrante e empurra-se o negro para baixo, para os piores setores da economia. 

 

Nesse processo o negro é logrado socialmente e apresentado como incapaz para trabalhar como assalariado. Nasce aí o mito da incapacidade do negro para o trabalho. O negro seria a partir dessa percepção racista visto como indolente, cachaceiro, não persistente. Enquanto o branco seria o trabalhador ideal. Em um momento da nossa história social, após a oficialização do fim do regime escravista, houve uma coincidência entre a divisão do trabalho e a divisão racial do trabalho. O que gerou o predomínio do branco em certos tipos de atividades e em outros os negros e seus descendentes. Temos assim que todo trabalho dito “qualificado”, “intelectual”, “nobre”, “limpo” era exercido pela minoria branca, ao passo que o subtrabalho, o trabalho não qualificado, braçal, subalterno é praticado pelo escravo e depois pelos negros livres. 

 

Negra é a vida consumida ao pé do fogão

Negra é a mão

Nos preparando a mesa

Limpando as manchas do mundo com água e sabão

Negra é a mão

De imaculada nobreza

 

Esta divisão de trabalho persiste até os dias atuais como parte dos resquícios de um sistema colonial e escravista. E assim a mobilidade social do negro descendente do antigo escravo é pequena. Seguindo Patrícia Hill Collins nas imagens de controle trazidas por Winnie Bueno (2019), o negro foi praticamente imobilizado pelos mecanismos sociais que as elites estabeleceram. 

 

A poesia negra é constituída pela reversão dos valores e avaliação do outro. A lei maior da negritude é mostrar como positivo tudo que era julgado como negativo. Não apenas nas características físicas, também nos aspectos históricos e culturais. Tudo deve ser dito e dito com exaltação. É nessa linha que segue Gilberto Gil ao desconstruir a imagem estereotipada sobre o negro. E esta é a intenção do compositor ao trazer para os versos iniciais de A Mão da Limpeza o dito popular e dar-lhe um sujeito enunciador – O branco. 

 

O branco inventou que o negro 

Quando não suja na entrada

Vai sujar na saída, ê

Imagina só! 

 

E o estereótipo é desconstruído: 

 

Na verdade, a mão escrava 

Passava a vida limpando

O que o branco sujava, ê

 

Uma distinta oposição entre identidade criada pelo colonizador e a realidade. O branco inventou... Na verdade, a mão escrava. 

 

A identidade e a consciência étnica são penosamente escamoteadas pelos brasileiros. Os censos do país já registraram diversas denominações diferentes que o brasileiro usou para fugir de sua verdade étnica e aproximar-se do modelo tido como superior. 

 

A ideologia do branqueamento nos remete ao século XIX. O colonizador português que com o seu sistema classificatório possibilitou a “categoria mulato” – para diferenciar o negro mais claro, portanto superior. Isso constituiu uma fragmentação da identidade étnica e que determinará a impossibilidade de surgir uma consciência mais abrangente do segmento negro e não branco. 

 

Gil em Sarará Miolo, com os versos irônicos, por um lado, e imperativo por outro, chama atenção para consciência da identidade étnica 

 

Sara, sara, sara, sarará

Sara, sara, sara, sarará

Sarará miolo 

Sara, sara, sara, cura 

 

O não branco luta para mascarar suas matrizes étnicas com os valores criados para discriminá-lo. 

 

Sara, sara, sara cura

Dessa doença de branco

De querer cabelo liso

Já tendo cabelo louro

Cabelo duro é preciso

Que é para ser você, crioulo

 

O “cabelo pixaim” é abominado pelo não-branco e ele luta para escondê-lo. Mas Gilberto Gil conclama: 

 

Sara, sara, sara cura

Dessa doença de branco, 

 

E anuncia a lei maior da negritude, valorizar, mostrar como positivo tudo que era desvalorizado. É desta forma que Gilberto Gil traz o discurso do negro e o desejo de um novo olhar para aquela representação que se convencionou ao longo do tempo. 



Resenha crítica produzida como atividade do componente curricular - Jornalismo e Cultura Brasileira ministrada pela profa. Helen Campos.


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