quarta-feira, 26 de maio de 2021

Negro Drama: Você deve estar pensando o que você tem a ver com isso?

 Negro Drama:

Você deve estar pensando o que você tem a ver com isso?

 

por Felipe Martins Farias

 

 

            Antes de iniciar esta análise, vou apontar de onde estou fazendo este texto: Eu, homem branco e de classe média, talvez seja uma das últimas (senão a última) pessoa apta a falar sobre o drama diário do negro brasileiro. Mas como a música questiona, o que eu devo ter a ver com isso? E partindo deste questionamento achei pertinente, já que envolve a matéria e os temas discutidos em sala, fazer uma análise de uma obra de um grupo que admiro e acompanho.

Identificar o cerne de um problema que moldou e molda um sistema que me beneficia diariamente em detrimento de tantos outros cidadãos é uma das chaves para mudança de atitude e postura diante do racismo sistêmico em busca de justiça social. E conforme a própria Winnie Bueno trouxe em seu trabalho “A justiça social só é possível se ninguém for deixado pra trás: se há subordinação de um grupo pelo outro não há justiça social”.

            O grupo Racionais MCs, fundado no final da década de 80 no Capão Redondo, zona sul de São Paulo, foi e ainda segue sendo uma voz ativa da comunidade negra e periférica do país. Com quase 30 anos de história, o grupo denunciou o racismo (individual e sistêmico) sofrido pelo cidadão negro brasileiro em grandes obras como “Negro Drama”. 





            A música, faixa do disco “Nada como um dia após o outro dia” de 2002, é um relato poderoso da percepção do racismo sofrido na pele diariamente pela população negra. A canção aponta a cotidianidade do tema, e os traumas causados pela persistência de uma chaga tão profunda e que é a todo momento lembrada. O trauma que eu carrego/ Pra não ser mais um preto fodido”. Em outra passagem, os versos remontam a naturalização da condição marginalizada do negro no Brasil: Me ver pobre, preso ou morto já é cultural”. É notório também dentro do discurso da música a influência das ideias de Malcom X que contrastam com o mito da democracia racial que impera no Brasil: escancarando o abismo social inciado com a escravização de negros africanos e seu posterior envio ao Brasil colônica e perpetrado através de políticas de exclusão e extermínio Edi Rock brada: “Pra quem vive na guerra, a paz nunca existiu”

            Mano Brown em seus versos dentro da mesma música revela mais um arquétipo feminino forjado pelas relações raciais no Brasil: sua mãe, mulher negra, nordestina, que deve ser “forte” ao desbravar sozinha a metrópole: “Uma negra e uma criança nos braços/Solitária na floresta de concreto e aço [...] Família brasileira, dois contra o mundo/ Mãe solteira de um promissor vagabundo”. Até aqui podemos concatenar o pensamento de Winnie Bueno em análise da obra de Patrícia Hill Collins, pois conforme aduz em seu texto: “O empoderamento político de mulheres negras jamais será possível em um contexto em que os homens negros estejam sendo prejudicados [...] Da mesma forma não há possibilidade de autonomia para os homens negros se as mulheres negras não puderem exercer plenamente suas capacidades.”. Brown ainda desafia o ouvinte que desconhece sua realidade (ou que a conhece apenas através de suas músicas) a encará-la e manter uma atitude positiva como é esperado do negro Brasileiro: “Sente o negro drama, vai, tenta ser feliz” e denuncia mais uma vez o espaço que é relegado à familias negras na cidade: “Eu recebi seu ticket, quer dizer kit / De esgoto a céu aberto e parede madeirite”.

            “Negro Drama”, assim como as demais músicas da extensa obra do grupo, faz um recorte frio e direto da realidade de famílias negras do Brasil, como o negro, impelido às margens da sociedade percebe em seu dia a dia as cicatrizes de um processo de mais de trezentos anos para o qual azinda não foi pensada uma solução concreta para além de medidas paliativas para suas consequências. E dentro deste processo a formação de arquétipos masculinos e femininos para tentar naturalizar a situação atual do cidadão negro, ao invés de assumir suas causas e iniciar um projeto efetivo de reparação histórica.





            E ao contrário do que diz Brown ao final da música, eu, branco, apenas li e assisti ao negro drama. Não conheço suas dores, tampouco seus frutos e a tentativa de compreender e escrever sobre dentro de um espaço que a disciplina me permite é uma das formas de se iniciar uma conscientização que fique para além de ideias e palavras. Mano brown relata que apesar de se falar e estudar sobre, nada substituirá a vivência na pele do racismo e de suas nefastas consequências para a história dos cidadãos e do país: Eu num li, eu não assisti/ Eu vivo o negro drama/ Eu sou o negro drama/ Eu sou o fruto do negro drama [...] Porque assim é que é, renascendo das cinzas / Firme e forte, guerreiro de fé /Vagabundo nato!”

 


Resenha crítica produzida na disciplina - Jornalismo e Cultura brasileira - profa. Helen Campos. Semestre 2021.1

            

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